terça-feira, 15 de março de 2016

Sociedades esquizofrénicas: Moçambique e Brasil*

Moçambique e o Brasil são países completamente diferentes em muitos sentidos. Essas diferenças tornam qualquer comparação aventureira de tal modo que o mais seguro é mesmo ficar pelo papo da Língua Portuguesa, blá-blá-blá. Não consigo, porém resistir à tentação de olhar para uma coisa que parece estabelecer um paralelo interessante, nomeadamente a cultura política. A História é diferente, claro, e por isso, é também complicado descortinar paralelos na cultura política. Mas quando vejo a forma como se discute, no Brasil e em Moçambique, o desfecho das mais recentes eleições não consigo mesmo resistir.
Em ambos os casos ganhou o partido errado. Isto na perspectiva de quem perdeu, claro. Em Moçambique o que aumenta o sentimento de ultraje e revolta – da parte de quem perdeu e da parte de quem acha que ganhou o partido errado – é a forte convicção segundo a qual quem ganhou logrou esse resultado na base de fraude eleitoral. No Brasil as eleições foram teoricamente limpas, mas dado que pesam sobre os principais políticos do partido que ganhou (mas não só, mas isso não interessa) graves acusações de corrupção aqueles que perderam sentem-se ludibriados, logo, é como se lá também tivesse havido fraude. Os termos das questões são diferentes, mas a reacção é quase a mesma.
Em Moçambique, o partido que perdeu (fortemente apoiado por uma imprensa ideológica – tipo Savana e Canal de Moçambique – e por uma credulidade sem limites na esfera pública) não poupa nenhum meio para reverter a situação, incluindo o uso da violência armada contra o Estado. No Brasil a violência armada (ainda) não é recurso, mas a intransigência é a mesma com a insistência em acções que têm como objectivo tornar o país ingovernável. Ainda não estou nos paralelos.
Vejo dois paralelos interessantes. Ambos têm a ver com o que gostaria de chamar de paradoxo do abolicionismo. Favor de não confundir este termo com a sugestão do historiador congolês, Jacques Depelchin, sobre o “síndroma do abolicionismo”, isto é aquela atitude de confundir a maldade com o que é mau a partir do momento que nós próprios decidimos considerar algo mau (e ainda esperar gratidão dos outros). Há um pouco disso no termo que uso aqui. Mas há mais. Inspiro-me criticamente em Joaquim Nabuco (aqui reconheço, envergonhado e embaraçado, o fascínio que o seu livrinho “O Abolicionismo” exerce sobre mim…) cuja campanha contra o fim da escravidão no Brasil apesar de nobre e louvável não pôs em causa o que tornou essa escravidão possível, nem procurou extrair da crítica algo que pudesse insular a sociedade brasileira de males idênticos. O paradoxo do abolicionismo é isto mesmo: como condenar moralmente algo que foi possível a partir do sistema de valores que eu próprio uso para justificar a minha condenação? É um pouco o problema de Arquimedes: encontrar um lugar (no mundo) para mover o mundo…
O paradoxo do abolicionismo manifesta-se de duas maneiras (os tais paralelos), ainda que ao contrário. Primeiro, no Brasil assim como em Moçambique, o vencido não tem discernimento suficiente para ver que a base da sua indignação, isto é aquilo que a torna legítima é a própria democracia. Ou por outra, só mantendo intacta a ideia de democracia é que quem condena o desfecho eleitoral será capaz de conferir legitimidade a sua indignação. Não é uma situação cômoda, nem fácil, pois se alguém quer ser coerente vai ter que articular a sua indignação dentro dos parâmetros normativos definidos pela própria ideia de democracia. E isto impõe limites à acção, um dos quais é particularmente rigoroso: a democracia não é um fim, mas sim um meio. Isto é, a democracia não pode ser o seu próprio fim. Eu não posso fazer recurso a meios anti-democráticos para tornar a democracia funcional. Portanto, a primeira manifestação do paradoxo do abolicionismo em Moçambique e no Brasil é o dilema enfrentado pelos pseudo-democratas. Como erguer a bandeira da democracia sem contudo atentar contra a democracia?
A segunda manifestação é de cunho mais filosófico. No fundo, o que os pseudo-democratas de Moçambique e do Brasil dizem é que não existe democracia nos seus países. Esta é uma saída airosa do dilema apontado mais acima. Só declarando a democracia como não-existente é que se justifica o recurso ao tipo de meios que são usados. Portanto, a democracia em ambos os casos é um “mito”, uma “farsa”, etc. Mas este truque levanta um problema bem bicudo, nomeadamente o problema de tornar inteligível todo um discurso que tem como objecto algo que não existe. Como é possível esse discurso? É aqui onde a porca torce o rabo. Na verdade, a única solução viável encontrada por filósofos para abordar este desafio consiste na elaboração dum discurso que parte do que existe para tornar inteligível o que não existe. Portanto, pode não haver democracia em Moçambique ou no Brasil. Existe, porém, e independentemente do Brasil e de Moçambique, algo que se chama democracia e em referência a qual é possível falar dos problemas respectivos dos dois países. Essa referência manifesta-se em forma de princípios que toda a acção democrática – ou que gostaria de ser assim qualificada – precisa de proteger. O dilema para os pseudo-democratas aqui também é que seriam obrigados a privilegiar meios democráticos na sua luta…
Este é talvez o maior desafio que ambos os países enfrentam. O desafio não é de mostrar que os “coxinhas” ou a Renamo estão equivocados ou que são movidos por interesses pouco dignos. O desafio é de identificar um espaço de debate que tenha na defesa da democracia o seu principal fim. É muito difícil, sobretudo quando o debate político é feito na base de palavras que pensam por nós. Democracia é uma dessas palavras. Corrupção é outra. Fiquei com orgulho das minhas colegas e amigas da Universidade Federal de Espírito Santo, a Marta Zorzal, a Adelia Miglievich Ribeiro e a Cristiana Losekann quando na semana passada vi o abaixo-assinado elaborado pelos professores dessa universidade. O abaixo-assinado respondeu às investidas contra a democracia com a afirmação do que torna a democracia num meio. Nunca vi nada idêntico em Moçambique (à excepção dum evento, sem seguimento, que teve lugar no ISPU em 2013), só apelos irritantes à paz.
Se calhar é aí onde acabam os paralelos com Moçambique, pois na Pérola do Índico está a ser difícil meter na cabeça da nossa intelectualidade que uma luta pela democracia que não assente na própria democracia é tudo menos o que diz ser. Só que aqui também há o problema da História. Muitos de nós ainda estamos sob os efeitos nefastos duma socialização política – cujos valores, por mais incrível que pareça, vão passando para os mais novos – socialização essa assente no princípio segundo o qual os fins justificariam os meios.
Mas o essencial está aí: reclamamo-nos democratas, mas o nosso coração bate ao sabor de outros valores. É esquizofrénico, se calhar a única maneira de nunca estarmos sozinhos.

*Texto de autoria de Elisio Macamo - sociologo Moçambicano

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