Moçambique acordou um dia destes
sobressaltado, com um relatório da Human Right Watch (HRW), uma organização
não-governamental que se dedica à causas sobre os Direitos Humanos. Segundo
esta organização, havia refugiados moçambicanos no Malawi que fugiram de
supostas atrocidades das Forças de Defesa e Segurança do Governo (FDS).
No mesmo diapasão, a STV, uma estação
televisiva nacional de capitais privados, mostrou uma reportagem em que
supostamente estava a falar com os refugiados, e estes testemunhavam que haviam
sido brutalizados pelas FDS, e que por isso abandonaram as sua aldeias e
refugiaram-se no Malawi.
Esta, que descrevi acima, é uma realidade
recente, que é o culminar de um processo que vem desde o final da guerra do 16
anos (1976-1992). Aliás, o Centro de Refugiados de Kapise foi aberto para
acomodar moçambicanos que fugiam desta guerra, e ali transformou-se em lar para
muitas famílias. A questão da semelhança cultural, linguística, etc, (as
fronteiras africanas foram uma imposição, e cortaram povos ao meio), facilitou
a inserção dos moçambicanos que lá procuraram refúgio.
É sabido que o Malawi não tem o sistema de
Bilhetes de Identidade, e com esta facilidade cultural, muitos moçambicanos
fizeram-se passar por malawianos, e muitos malawianos fizeram-se passar por
moçambicanos, embora por razões diferentes. Os moçambicanos, para acesso à
escolas, hospitais, entre outros serviços melhores em comparação com as do
Centro, e os malawianos para ter acesso à distribuição gratuita de mantimentos,
tendo em conta a dificuldade de produzir em razão do fenómeno El- Nino.
Assim, o espaço para se confundir os dois
povos foi criado, e o hábito de se passar por cidadão de uma e doutra nação,
tomou conta dos habitantes das duas partes da fronteira, principalmente na zona
de Tete e Niassa, onde a língua é comum.
Até Junho de 2014 (22 anos depois do fim da
guerra), ainda havia cerca de 2000 pessoas a viver naquele Centro, dos quais
somente 246 eram moçambicanos, e o restante (pelos vistos a maioria), eram malawianos.
Estes moçambicanos podem ter ficado por várias razões, como ter suas crianças
nas escolas, ter suas machambas naquele país, ou terem desenvolvido um negócio
que não queriam abandonar. Por isso que passavam-se de malawianos ou
moçambicanos de acordo com as vantagens que disso ganhavam.
De recordar que as populações da zona
fronteiriça dos dois países, não observam a fronteira como um mecanismo de
separação efectiva, sendo que há moçambicanos e ou malawianos com machambas,
esposas ou crianças a estudar no outro lado da fronteira. Aliás, há zonas em
Moçambique onde a moeda em circulação é o Kwacha malawiano.
Por outro lado, a zona de Nkondezi, Mondjo, Macalauane, Ndande,
entre outras na zona fronteiriça, sofreram ataques cerrados dos guerrilheiros da
Renamo em 2014 e 2015 (antes e depois das eleições gerais a 15 de Outubro de
2014), uma vez que naquela zona não se fazia sentir a presença da FDS, e os
guerrilheiros eram a Lei e o Direito. Com essa abertura, os guerrilheiros
fizeram uma autêntica caça às bruxas, e torturavam ou eliminavam os que eram
conotados como apoiantes do Governo do dia.
Aliás, antes da eleições, estes guerrilheiros
eram os que faziam a campanha eleitoral para o seu partido, dizendo que a
Renamo ia governar (Renamo é um partido com assento parlamentar, mas que mantém
uma milícia armada), e usavam a força, tanto para convencer o eleitorado, assim
como para diminuir a concorrência. Muitos régulos (chefes tradicionais dos
povoados), foram mortos ou torturados pelos guerrilheiros da Renamo.
O êxodo para Kapise começou aqui. Depois de
diminuir o número dos seus opositores usando a força, os guerrilheiros da
Renamo quase que montaram uma administração paralela ao do Estado naquelas
zonas acima mencionadas.
Com a derrota da Renamo e do seu líder nas
eleições de 2014, este partido, através do seu líder, ameaçou que governaria à
força nas províncias onde ganhou as eleições, e este facto chegou aos ouvidos
dos seus guerrilheiros. Aliás, Afonso Dhlakama fez um périplo pelo país anunciando
esta informação, ante o olhar sereno do Estado moçambicano.
Assim, os guerrilheiros, quais senhores e
donos do local , começaram a expandir a sua zona de influência, e procuravam
por régulos, secretários do partido Frelimo (que está no Governo), entre outros
que directa ou indirectamente eram tidos como apoiantes do Governo, o que
culminou com assassinatos, raptos e torturas a estes cidadãos, que se viram
forçados, ou a ir a Kapise ou a à Cidade de Tete, procurando refúgio.
Nesse entretanto, a Renamo, vendo que havia
um espaço onde os seus guerrilheiros tinham um certo controlo territorial,
enviou os seus guerrilheiros que estavam na zona de Maríngue, Savane e outras
bases de Manica e Sofala para aquela zona de Tete, o que aumentou a
insegurança, espalhando terror entre a população, aumentando o número das
pessoas que fugiam daquelas zonas para o Malawi.
O Governo, alertado sobre esta questão,
mobilizou uma força policial que foi fazer um trabalho de reposição da ordem,
porém, como os outros que eram tidos como apoiantes do Governo, estes eram
emboscados e suas viaturas destruídas, tendo morrido polícias nessa operação.
Assim, o Governo reforçou os contingentes, e
conseguiu desalojar os guerrilheiros da Renamo das suas bases ao longos dos
locais como Ndande, Mondjo, Nkondezi, e estes, por temerem a presença das FDS
refugiaram-se no Malawi, deixando as suas armas enterradas em território
moçambicano, como faziam durante a guerra dos 16 anos.
É aqui onde os trabalhadores da ACNUR
salvam-se. O
Centro de Refugiados de Kapise estava para ser encerrado em Junho deste ano
(2016), e isto significava que todo o pessoal da ACNUR que está(va) a trabalhar
ali ficaria sem o seu ganha-pão. Aliás, a própria representante da ACNUR no
Malawi, já tinha pedido, ainda em 2014, para que àqueles 246 moçambicanos que
acima referimos se desse o estatuto de refugiados, o que não vingou por motivos
óbvios.
Vendo-se sem saída, e com o emprego a
fugir, o pessoal da ACNUR recebeu os guerrilheiros da Renamo, para além de
angariar malawianos para se justificar o funcionamento do Centro de Kapise.
Para tal, muitas histórias deveriam ser contadas, mas não na sua totalidade,
pois deveriam ser tão dramáticas para se justificar a necessidade da
continuação do Centro de Kapise.
O caso das deavenças do Governo com a
representante da ACNUR no Malawi não é um romance doce, mas é uma novela
trágica que desagua na situação em que quem saiu a vencer foi a representante
da ACNUR, pois meio mundo acreditou nas suas palavras, sem sequer mexer uma
palha para compreender várias vicissitudes que rodeiam este imbróglio.
O Governo de Moçambique é visto pela
representante da ACNUR no Malawi, como aquele que quis acabar com o seu
emprego, por este ter negado de considerar que os moçambicanos que estavam no
Malawi depois de 22 anos do fim da guerra fossem considerados refugiados. Por
isso que há uma guerra silenciosa, e como exemplo, é a proibição que esta
representante da ACNUR impôs, para que oficiais do Governo de Moçambique não
façam o recenseamento dos seus cidadãos naquele campo de Kapise.
Outro aspecto não menos interessante, e que
pode clarificar esta situação, é a abordagem aberta sobre o assunto que o
Governo malawiano deveria tomar face a este problema. Mas, olhando para a
situação daquele país, o Governo malawiano não vai pronunciar-se, porque o
Campo de Kapise também serve para a segurança alimentar dos seus cidadãos, face
à estiagem e cheias que afectam a África Austral, por causa do fenómeno
El-Nino.
Assim, para se criar esta situação que está
a ser discutida em todo o mundo, houve a reunião de três coisas: OPORTUNIDADE,
CONSPIRAÇÃO E MÁ-FÉ.
A OPORTUNIDADE foi do pessoal da ACNUR
que, face à entrada de moçambicanos, tanto os perseguidos pelos guerrilheiros da
Renamo, assim como estes mesmos guerrilheiros fugindo da acção das FDS, apanhou
“matéria prima” para a manutenção do Campo de Kapise. Esta oportunidade salvou
o emprego ao pessoal da ACNUR, e devia ser massificada e bem justificada para
que o emprego rendesse. Aí entra a conspiração.
Na CONSPIRAÇÃO, a representante da
ACNUR não colabora com o Governo moçambicano, e encara os oficiais do Governo
mandatados para fazerem trabalho junto dos moçambicanos que lá estão como
inimigos, e como aqueles que querem lhe tirar o emprego. Assim, criou uma
dramatização, recorrendo a HRW, que também só teve menos de uma semana de
trabalho, e produziu um relatório emocionante que “chocou” o mundo.
A MÁ-FÉ é do Governo malawiano,
que tem todo o dossier sobre o desenvolvimento daquele campo, mas as condições
climatéricas não lhe permitem que opte pela verdade, preferindo ficar na sombra
e colher os benefícios, através das ajudas internacionais que vão minimizar o
impacto da seca e cheias na produção das populações daquela zona e não só.
O que é necessário? A representante da
ACNUR é uma pessoa que precisa de alimentar os seus, e o Malawi é um país que
precisa, também, de alimentar os seus. Os apoios e ajudas internacionais para
os refugiados de Kapise e do outro Centro que vai abrir, vão certamente
resolver estes dois problemas, e por isso estes dois personagens desta história
não podem ter isenção.
Quanto à HRW, esta deve fazer um trabalho
aturado, que deve partir do princípio, e não apostar em entrevistas rápidas com
perguntas pré-concebidas. É preciso dialogar, questionar e confrontar os dados,
não só das alegações das supostas vítimas, mas principalmente do génese da
existência, manutenção e agora ressurgimento de um campo de refugiados de
guerra que sobreviveu a 22 anos de paz.
* artigo publicado em : https://www.academia.edu/23513352/OPORTUNIDADE_CONSPIRA%C3%87%C3%83O_E_M%C3%81-F%C3%89_KAPISE_UM_CAMPO_DE_REFUGIADOS_DE_GUERRA_QUE_SOBREVIVEU_A_22_ANOS_DE_PAZ_EM_MO%C3%87AMBIQUE
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